quarta-feira, 17 de abril de 2024

quem cala...



Imagem: Agência Espacial Brasileira


quem cala, consente,
diz o ditado…

será mesmo assim?
ou o interlocutor está ausente, 
talvez distraído 
com as maravilhosas nuvens, enfim,
não quer polemizar,
prefere contemplar 
as flores do jardim!


Imagem: Jefil


J Estanislau Filho

sexta-feira, 12 de abril de 2024

A metamorfose

 Luís Fernando Veríssimo


Imagem: Templo Cultural



Uma barata acordou um dia e viu que tinha se transformado num ser humano. Começou a mexer suas patas e viu que só tinha quatro, que eram grandes e pesadas e de articulação difícil. Não tinha mais antenas. Quis emitir um som de surpresa e sem querer deu um grunhido. As outras baratas fugiram aterrorizadas para trás do móvel. Ela quis segui-las, mas não coube atrás do móvel. O seu segundo pensamento foi: “Que horror… Preciso acabar com essas baratas…”


Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. Antigamente ela seguia seu instinto. Agora precisava raciocinar. Fez uma espécie de manto com a cortina da sala para cobrir sua nudez. Saiu pela casa e encontrou um armário num quarto, e nele, roupa de baixo e um vestido. Olhou-se no espelho e achou-se bonita. Para uma ex-barata. Maquiou-se. Todas as baratas são iguais, mas as mulheres precisam realçar sua personalidade. Adotou um nome: Vandirene. Mais tarde descobriu que só um nome não bastava. A que classe pertencia?… Tinha educação?…. Referências?… Conseguiu a muito custo um emprego como faxineira. Sua experiência de barata lhe dava acesso a sujeiras mal suspeitadas. Era uma boa faxineira.


Difícil era ser gente… Precisava comprar comida e o dinheiro não chegava. As baratas se acasalam num roçar de antenas, mas os seres humanos não. Conhecem-se, namoram, brigam, fazem as pazes, resolvem se casar, hesitam. Será que o dinheiro vai dar? Conseguir casa, móveis, eletrodomésticos, roupa de cama, mesa e banho. Vandirene casou-se, teve filhos. Lutou muito, coitada. Filas no Instituto Nacional de Previdência Social. Pouco leite. O marido desempregado… Finalmente acertou na loteria. Quase quatro milhões! Entre as baratas ter ou não ter quatro milhões não faz diferença. Mas Vandirene mudou. Empregou o dinheiro. Mudou de bairro. Comprou casa. Passou a vestir bem, a comer bem, a cuidar onde põe o pronome. Subiu de classe. Contratou babás e entrou na Pontifícia Universidade Católica.


Vandirene acordou um dia e viu que tinha se transformado em barata. Seu penúltimo pensamento humano foi: “Meu Deus!… A casa foi dedetizada há dois dias!…”. Seu último pensamento humano foi para seu dinheiro rendendo na financeira e que o safado do marido, seu herdeiro legal, o usaria. Depois desceu pelo pé da cama e correu para trás de um móvel. Não pensava mais em nada. Era puro instinto. Morreu cinco minutos depois, mas foram os cinco minutos mais felizes de sua vida.


Kafka não significa nada para as baratas…


 


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“Luís Fernando Veríssimo nasceu em 1936, em Porto Alegre, e é filho do famoso escritor Erico Veríssimo (1905–1975). Teve parte de sua educação nos Estados Unidos, onde se tornou ótimo saxofonista. No Brasil, trabalhou como redator, tradutor e jornalista até depois de sua carreira como escritor decolar. Ele escreveu dezenas de contos, crônicas, romances e novelas, além de ser cartunista. O autor é conhecido por seu humor e sua ironia ao fazer críticas sociais e é muito estudado e homenageado na atualidade”. (Mundo Educação)


quarta-feira, 3 de abril de 2024

Brilho e outros poemas




Imagem: Jefil


 Brilho


O brilho da noite 
vem das estrelas 


O da boca 
vem da fala


O da alma 
vem do coração 

e se espalha na multidão 



o brilho que vem 
é o mesmo que vai 


o brilho do colo
vem da mãe e do pai 


o brilho do brilho 
vem da filha e do filho 

 e reverbera em gerações



 o brilho vem da floresta 
da natureza em festa 


do vento balançando as folhas
vem da chuva que molha


o brilho vem da lida
vem da poesia

o brilho vem dá vida 


Amo

amo a beleza 
que derrama 
a delicadeza 
de quem ama 


amo os ardis
o toque nos cabelos 
o balanço dos quadris 
o eriçar dos pelos 


amor que se manifesta 
na ausência de sexo
de quem não contesta
inocente amplexo


Haicais

Imagem: la


aquecimento
Inferno terrestre 
dia cinzento 


humanidade 
tanta perversidade _
fatalidade 


o lixo no chão 
ambiente ferido_
falta educação 


terra responde
uma bomba relógio_
a quem atende 


um luxo o fluxo 
de gente verdadeira _
da uva o cacho 

 

 Cirurgia


Formatação: Fernando Estanislau



obra de arte 
na pele o corte
o sangue dá cor à tela
agulha costura
a cura completa 

J Estanislau Filho 


quinta-feira, 21 de março de 2024

O fim do mundo




Imagem:Google

A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto temiam.

Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós, crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.

Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me causava medo nenhum.

Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste – mas que importância tem a tristeza das crianças?
Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.

Dizem que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena, porque eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que conservo dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos naquela noite já muito antiga.

O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos — além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.

Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos este dom de viver da maneira mais digna.

Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus — dono de todos os mundos — que trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos — segundo leio — que, na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.

Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos posições que não temos – insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade total.
Ainda há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês.


Cecília Meireles


Imagem: Google


Nasceu em 1901 no Rio de Janeiro e viveu até os 63 anos. Ela disse em sua última entrevista — ao jornalista Pedro Bloch, publicada em maio de 1964 na revista Manchete — que seu vício terrível era gostar de gente.

Teve sua infância marcada por perdas profundas. Seu pai e sua mãe morreram quando ela ainda era criança. Morte prematura também tiveram seus irmãos Carlos, Vítor e Carmen. Cecília Meireles foi criada por sua avó Maria Jacinta Benevides, açoriana, personagem recorrente em sua obra.

A maior tragédia de Cecília Meireles ainda estaria por vir: o suicídio de seu marido, o ilustrador português Fernando Correia Dias, fato que transformaria a visão de mundo da poeta. Correia Dias suicidou-se em casa, em 1935, enquanto as filhas se preparavam para os festejos do Dia da Bandeira.

“Há muitas mortes por detrás dessa morte. E não foi apenas um suicídio: foi também um assassinato. Posso eu viver muito tempo; pode minha existência tomar os mais inesperados rumos — mas essa noção da inutilidade humana; esta indiferença pela esperança, este desapego da lógica farão de mim cada vez mais uma criatura sem raízes na terra, prescindindo de tudo e à mercê dos casos que a queiram transportar”, escreveu a poeta a Diogo de Macedo, amigo português. (Carta publicada pela revista Terceira Margem, Porto, Portugal, 1998).

Cecília Meireles foi poeta, jornalista, cronista, escreveu para crianças, foi professora. Também esteve engajada na defesa de uma educação pública, laica e de alto nível como caminho para diminuir as desigualdades sociais do país.


terça-feira, 5 de março de 2024

O Vizinho Assassino



Imagem: Brasil de Fato


Jibril Rajoub se esforça pra ser um bom vizinho, apesar do outro lado não fazer o mesmo. Coloca o som num volume ensurdecedor;  soca a parede-meia e muitas vezes deixa o lixo no passeio da casa de Jibril, que pacientemente o recolhe e deposita na lixeira. Como o vizinho não respondia ao seu cumprimento,  Rajoub silenciou. Melhor deixar pra lá, até mesmo porque, o vizinho já demonstrou não querer a sua amizade. 

     Abner, esse é o nome do vizinho de Jibril, satisfeito ou não, com a calma de Rajoub, resolveu ir além, ao demolir o muro, sem ao menos consultá-lo. Poeira e entulho tomaram conta do lote de Jibril, que não disse nada. Mas observava atento.  Sua paciência dava sinais de esgotamento. O conflito não tardaria chegar. Aconteceu quando Abner começou a reconstruir o muro. Avançou vinte centímetros no lote do vizinho. Jibril não se conteve: pegou uma picareta e colocou abaixo, a construção que se iniciava. A reação de Abner foi violenta. Quebrou as janelas da casa de Jibril, que respondeu com a picareta em punho, em direção de Abner, que sacou um revólver e deu tiro no peito de Rajoub,  que caiu morto na hora.

     É mais ou menos isso o que acontece na guerra entre  Israel e Palestina, principalmente na faixa de Gaza.

 

J Estanislau Filho

Imagem: Brasil de Fato

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

luta de classes




Tela-mural “Manifestación” (1934), do pintor argentino Antonio Berni.



nas ruas a realidade
nua e crua
sem meia verdade
adoece e adormece corações
acorda emoções
conforme a concepção
de cada um
de cada uma
em suma
assume posições
ao ver cidadãos
sem cidadanias
sob marquises e viadutos
tendo como companhia
animais de estimação
um cão
uma cadela
cenário que a novela
não exibirá jamais
e que se revela
como se organiza 
as classes sociais


J Estanislau Filho

Imagem: Revista Fórum

domingo, 18 de fevereiro de 2024

João Batista, o taxista



Imagem cedida por João Batista


João Batista, o taxista, vive num compasso de espera.
Espera a hora do abraço do amor
e não se desespera com a dor,
seja lá de quem for, porque a dele não é menor,
nem maior que a que se vê ao redor.
Ele espera pelo passageiro, 
que optou pelo uber,
que não fornece água de beber
ao usuário.
João espera uma nova era,
um novo tempo, agora,
sem percalços no itinerário.
Nesse compasso que demora,
estaciona o taxi sob a sombra 
de um pé de amora.
O taxista não se assombra,
espera a hora da corrida
pedindo a Deus que lhe proteja a vida,
enquanto ouve um som de outrora,
que o remete ao interior, de onde veio,
e traz uma saudade que o devora.


J Estanislau Filho

João Batista num dia de folga

Contato taxista Belo Horizonte e região:

(31) 9876-38221

Corridas para as cidades históricas de Ouro Preto, Mariana, Congonhas, Tiradentes, São João del Rei, Bichinho e outras, valor a combinar.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

O fruto do vosso ventre




Imagem: Google


A intuição  materna raramente falha. 

    Antes mesmo de nascer, pelos movimentos que fazia no útero, a mãe percebera  algo, no mínimo estranho, estava por acontecer. Rezou para que a  intuição a enganasse. Que o filho nascesse saudável, era o seu desejo.

   A hora do parto chegou e o rebento nasceu, sem choro, algo incomum. Tão logo veio ao mundo, lançou um olhar de desprezo à mãe. Agarrou os seios com violenta voracidade, fincando as unhas,  provocando sangramento. Na primeira semana gritava alucinadamente no berço, exigindo seios, cujo leite secara. O banco de leite do único hospital da cidade diminuíra de tal forma, que obrigou a direção a buscar alternativas, inclusive, com campanha dirigida às mães que amamentavam,  a doarem. A fama da criança faminta se espalhara, ultrapassando as fronteiras do município. O bebê crescia desmesuradamente.  Ao completar um ano, parecia ter três.  Comia e bebia demais. E não engordava. Aos dois anos parecia um vara pau, comprido e magro. Aos cinco corria pelas ruas da cidade, como um atleta olímpico. Enquanto corria, chutava o que aparecia pela frente. As garotas fugiam, pois ele as ameaçava, chegando mesmo a desferir golpes em várias, o que levou o delegado a intimar os pais a prestarem depoimentos. Os percalços estavam no início. O que aconteceu nas creches se repetiu ao matricular no ensino básico: nenhuma instituição queria matriculá-lo. A mãe, com marcas na pele e na alma por conta das agressões do filho,  não sabia o que fazer para educá-lo.  As agressões às meninas, nas escolas de ensino médio só diminuíram depois de a direção providenciar boletim de ocorrência. O pai declarou na delegacia, que o filho tinha vocação militar, pois fora flagrado várias vezes, fazendo continência diante do espelho.  

    Um inferno, que parecia não ter fim, teve uma pausa, ao chegar  a idade do alistamento militar.  Os pais, aliviados, prepararam uma festa, para comemorar o evento. A primeira exigência do filho era de não convidar mulheres. Disse com firmeza:  - Não quero a presença de mulheres.  Pare de implicar, filho, lembre-se de quem o trouxe ao mundo, disse a mãe.  Ele respondeu apenas com um  olhar duro, que a silenciou. 

   Seu ódio pelas mulheres era transparente, jamais o escondeu, como também não escondia  a narrativa  sobre a superioridade masculina. 

  Depois de cumprir o tempo como reservista, entrou para o Exército. Não era um cadete brilhante, mas tinha talento, especialmente em exercícios físicos. Seu "batismo"  na corporação foi de acordo com a tradição: testes físicos pesados. Fora colocado, puxando uma carroça de tração animal, com um oficial o chicoteando, para o delírio dos cadetes. E ele resistiu bravamente. Ao término dos testes, suado e cansado, irritou-se com a presença da esposa do Comandante, exigindo-lhe continência, que só foi aceita, a contragosto, depois da fala do comandante: - Soldado, é uma ordem! O nosso bravo soldado seguiu para  o alojamento, cabisbaixo, jurando vingança.  Um ódio ao Comandante tomou conta de seu ser. "Comandante que se submete a uma mulher, não merece respeito" sentenciou durante o trajeto.

     De onde vinha esse ódio, era o que os psicólogos tentariam descobrir, depois de uma série de eventos futuro. O cadete fez carreira no Exército, chegando a Oficial. O ódio às mulheres aumentava, com acréscimo aos vulneráveis: negros, índios, ciganos e pobres. Sua concepção sobre a supremacia branca ganhava contornos assustadores. Fazia planos de apurar a raça  humana. O mundo não se desenvolvia, segundo a sua teoria, por causa de uma raça inferior, preguiçosa e ardilosa. Eliminar, exterminar, fuzilar,  depurar eram suas palavras de ordem.  Mulheres não deviam ter os mesmos salários que os homens, porque ficam grávidas; que ao ir a um quilombo, constatou que um afrodescendente mais leve, pesava sete arrobas; que deveria ter fuzilado uns trinta mil corruptos; o grande erro foi torturar e não matar.  Esse homem tinha um projeto de poder, por isso entrara para o Exército. A farda impõe medo, confere poder.

     Mas, não era simples chegar a General, seu sonho. Vendo a realização desse sonho inviável, promoveu uma rebelião no quartel, com ameaça de tocar fogo. Foi expulso, embora premiado e aposentado como Capitão.

     A Europa foi devastada na segunda guerra mundial, provocada por um homem obcecado pelo poder e o ódio era o combustível,   principalmente aos judeus, tido por ele como inferiores, responsáveis pelo suposto atraso da humanidade. Suas frases de efeito reverberaram: 

"As grandes massas cairão mais facilmente numa grande mentira, do que numa mentirinha",  

"Que sorte para os ditadores que os homens não pensem". 

"Torne a mentira grande, simplifique-a, continue afirmando-a, e eventualmente todos acreditarão nela".

Encurralado pelo sistema de justiça, prestes a ser preso, esse homem se matou, levando consigo, sua esposa. 


    Obs.: Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas, é mera coincidência. 


J Estanislau Filho

Imagem: o autor em Mariana-MG


J Estanislau Filho é mineiro de São João do Oriente, mas viveu a infância e parte da adolescência em Jampruca, no Vale do Rio Doce, divisa com o Vale Mucuri. Escreve em seu blog, no Recanto das Letras, no Facebook e em outras mídias socias. Editou e publicou os seguintes livros:

Nas Águas do Arrudas - poesias (1984)
Três Estações - poesias (1987)
O Comedor de Livros - poesias (1991)
Crônicas do Cotidiano Popular - crônicas (2006)
Filhos da Terra - crônicas com fechos poéticos (2009)
Todos os dias são úteis - poesias (2009)
Palavras de Amor - poesias (2011)
Crônicas do Amor Virtual - crônicas (2012)
A Moça do Violoncelo - contos (2015)
Estrelas - poesias (2015)
Prova de Vida - crônicas (2021)




quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A faceta anti-imperialista de Graciliano Ramos



Por que Memórias do Cárcere extrapola a experiência pessoal – e mostra o aprisionamento dos povos. As quatro “grades” que o livro revela. Sua relação com o estatuto colonizado: em nome da espoliação, serás desumanizado e dissecável



EUROCENTRISMO EM XEQUE

por Luis Eustáquio Soares






Título original: Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos e o estatuto colonizado da humanidade


Para Domenico Losurdo


Estatuto colonizado da humanidade e acumulação primitiva permanente

Karl Marx analisou detidamente o que, em interlocução com Adam Smith, chamou de acumulação primitiva do capital, assim a descrevendo no capítulo 24 de sua obra de referência, intitulado “A assim chamada acumulação primitiva”: Vimos como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do capital é produzido mais-valor e do mais-valor se obtém mais capital. Todo esse movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso, do qual só podemos escapar supondo uma “acumulação primitiva prévia à acumulação capitalista, uma acumulação que não é o resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida” (MARX, 2017,785).



O capital não surgiu do nada, necessitando apropriar-se da acumulação primitiva produzida anteriormente ao modo de produção capitalista, resultado no Ocidente de relações escravistas de produção, como o caso das civilizações greco-romanas; e das relações feudais de produção. Entretanto, o círculo vicioso do capital, com o dinheiro transformado em capital e este produzindo mais-valor, para gerar mais-capital, de que tratou Marx no trecho citado, segundo Rosa Luxemburgo de A acumulação do capital(1913), não se constituiu apenas por meio da acumulação primitiva precedente, pois é também inseparável de uma acumulação primitiva transversal e transtemporal, abarcando o passado, o presente e o futuro.


O estatuto colonizado dos povos, assim, diz respeito às maiorias desumanizadas, violentadas e sangradas pela voracidade sem fim da acumulação primitiva permanente do capital. Está diretamente vinculado ao processo da expansão colonial – acumulação primitiva, stricto sensu –, assim como pela mundialização capitalista (das grandes indústrias e das relações mercantis) e pela expansão do capital monopólico, tendo em vista a fase propriamente imperialista do capitalismo, iniciada no final do século XIX, responsável, no XX, pelas duas grandes guerras mundiais.


Nesses três períodos, o colonial, o capitalista e o imperialista, os continentes mais afetados pela acumulação primitiva permanente do capital são a América Latina, a África, a Ásia e a Oceania, regiões onde habitam os “Condenados da Terra” (1961), para fazer referência a uma fundamental obra homônima de Franz Fanon.


Esses, “os condenados da Terra”, são aqueles milhões (centenas, podendo, ao longo do tempo ser mais ainda) de seres humanos que se encontraram no meio do redemoinho das guerras de saqueio, intervenções e golpes das grandes potências ocidentais como, por exemplo, a primeira Guerra do Ópio, de 1839 a 1842, a partir da qual a Inglaterra transformou a China em uma semicolônia, ao impor o Tratado de Nankim, de 29 de agosto de 1842; e ao tomar para si o controle de portos fundamentais como o de Cantão, Ning-po e Shanghai, dentre outros, com repercussões sociais e político-econômicas que podem ser objetivadas ainda hoje, com seus incontáveis e anônimos mortos.


Houve, ainda, uma segunda Guerra do Ópio, entre 1856 e 1860, dessa vez com a participação de um consórcio de países imperialistas como a França, os EUA e a Inglaterra, com a liderança deste último. Resultado: milhões de mortos, feridos, órfãos; um país humilhado e submetido. Entre as duas Guerras do Ópio há que mencionar a Revolta do Estado Celeste da Grande Prosperidade, conhecida como Taiping, de 1851-1864, uma guerra messiânica camponesa, estimulada por Inglaterra, que começou ao sul da província Huang-si e depois se estendeu pelo centro da China, ao longo do rio Yangtsé.


A esse respeito, quando a Inglaterra viu que estava perdendo o controle, interveio com a Segunda Guerra do Ópio, com o mencionado consórcio de países, esmagando e triturando camponeses. Não será demais explicitar que o uso de drogas e da religião para submeter povos alcançou uma dimensão multitudinária com a Inglaterra e não é por acaso que seja a principal forma de dominação estadunidense. Opiáceos, inclusive dos artefatos de sua indústria cultural; e fanatismo religioso não estão por aí, aonde se vá? Não serão um pretexto imperialista para estimular a violência e assassinar a juventude periférica, inclusive e sobretudo a negra?


Em linhas gerais, nesse contexto, o estatuto colonizado da humanidade pode ser definido como o efeito trágico da acumulação primitiva permanente contra os povos, entendendo por primitivo não o que vem antes apenas, mas também o seu sentido econômico, o de estar condenado a não entrar na história, a ser pré-histórico, desumanizado, infantilizado, povo sem soberania, limitado ao setor primário da produção – um objeto sem vontade própria, manipulável, dissecável, escravizado, matável, como a natureza.



A trans-história milenar do racismo do Estado colonial

O racismo de Estado é uma categoria teórico-filosófica desenvolvida por Michel Foucault no livro Em defesa da sociedade (1976), assim a definindo: “um racismo de Estado: um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos; um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social” (FOUCAULT, 2005, p. 73).


O filósofo francês, no livro citado, partiu do pressuposto de que o racismo de Estado fora desenvolvido no interior de Estados separados, não tendo relação com conflito entre povos. Cada sociedade, nesse contexto, definiria o segmento da população que seria considerado como super-raça, os biopoliticamente imunizados; distinguindo-o da sub-raça, então considerada impura e por isso sem garantia de imunidade, seja no sentido de proteção militar, seja sanitário, seja econômico.


Seguindo à risca os estereótipos da Primeira Guerra Fria ianque contra o socialismo real, com o ranço de uma análise que desconsiderou a luta de classes como a categoria fundamental das sociedades polarizadas, Foucault, como não poderia deixar de ser, apresentou como exemplos de racismo de Estado a Alemanha de Hitler e a União Soviética.


Absurdo total, porque eslavos, judeus, ciganos e comunistas eram considerados a sub-raça, sem contar o fato de que os soviéticos foram o alvo principal do nazismo. Afinal, de onde veio a Operação Barbarossa? Qual país foi invadido? Qual cidade de que país mereceu esses insubstituíveis versos de Drummond, do poema “Cartas a Stalingrado”: “As cidades podem vencer, Stalingrado!/ Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga./ Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo (DRUMMOND,1991, p. 165)”?


Se o racismo de Estado é “um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma”, não seria o caso de analisá-lo como tipicamente ocidental? Com Foucault e ao mesmo tempo contra Foucault, a história do Ocidente pode ser separada, desde Grécia e Roma, de uma permanente autopurificação racial, sempre ávida em distinguir a super-raça (os guerreiros, os escravocratas, os heróis, os oligarcas) das sub-raças (os povos submetidos e escravizados, os camponeses, os operários)?


O argumento do filósofo francês só tem validade, pois, se deslocado para a história do Ocidente, que não cessa de dividir a si mesmo em Ocidente da super-raça e em Ocidente da sub-raça, ao mesmo tempo em que identifica esta última aos povos espoliados, golpeados, superexplorados, matáveis; não-ocidentais.


A Revolução Haitiana de 1791 a 1804, a primeira ao mesmo tempo anticolonial e antiescravista, é, a propósito, um exemplo insuperável para definir o racismo de Estado colonial do Ocidente. Liderada pelo ex-escravo Toussaint Louverture e Jacques Dessalines, a vitória épica dos “jacobinos negros” contra o domínio colonial francês jamais foi esquecida.


Como se sabe, Louverture e Dessalines foram apoiados, no período, por espanhóis e ingleses, com os estadunidenses nos bastidores; apoio que refletia os conflitos e interesses entre as potências coloniais do Ocidente. Entretanto, por mais que disputassem e disputem entre si o saqueio dos povos, as oligarquias do estatuto colonizado da humanidade sempre se rearticulam e se realinham em nome do eterno retorno do racismo de Estado colonial do Ocidente, razão por que Haiti pague um preço descomunal até hoje por sua ousadia, sendo um dos países mais miseráveis da Terra.


Ainda que a marca de Caim do estatuto colonizado da humanidade seja a pele negra, novamente com Foucault e na contramão dele, se for verdade que a história do oligárquico ocidente seja a da formação ideológica do racismo de Estado da super-raça ocidental, esconjurando a sub-raça tanto entre segmentos de sua população quanto entre os povos não-ocidentais, não será inverossímil supor que a pele branca também seja alvo


O caso irlandês é exemplar. Durante séculos, foi “o quintal” da acumulação primitiva da fase colonial, capitalista e imperialista do domínio inglês, hegemônico até a primeira metade do século XX, tendo sido objeto de agressões permanentes, inclusive usando, para tal, o pretexto religioso, como ocorrera durante a Primeira Guerra Civil Inglesa, de 1642-1651, com a ascensão do “Moisés puritano”, Cromwell, cujo breve período no poder foi marcado por uma perseguição implacável aos “impuros” católicos irlandeses; perseguição que serviu de pretexto para a expansão latifundiária dos lordes ingleses na Irlanda. ´


E, por falar em lordes ingleses, é importante não esquecer que os estadunidenses, com seus lordes escravocratas, dominaram o tráfego negreiro na América Latina e especialmente no Brasil, no exato momento em que a Inglaterra o obstaculizava em nome da emergência da escravidão assalariada do capital, como assinalou Luiz Alberto Moniz Bandeira no seguinte fragmento do capítulo XII de Presença de Estados Unidos no Brasil: “De 1831 a 1856, cerca de 500 mil escravos entraram no Brasil, a maioria em navios dos Estados Unidos (BANDEIRA,2007, p. 123)”.


Sempre com bandeira falsa e com golpes e guerras por procuração, como a recente Operação Lava Jato no Brasil, a Doutrina Monroe, que este ano completará 200 anos, ocupou o lugar da Europa no estatuto colonizado latino-americano para se tornar mundial a partir, com Truman, de 1947, data que ratifica o início da hegemonia planetária ianque, com a criação ao mesmo tempo do Departamento de Defesa, do Estado-Maior Unificado, do Conselho de Segurança Nacional e finalmente da Agência Central de Inteligência, a CIA.


O objetivo dessa superestrutura estatal do ultraimperialismo estadunidense não é outro senão este: dominar, em escala planetária, a acumulação primitiva permanente e, com esta, o estatuto colonizado da humanidade, ao sabotar e fazer de tudo para impedir a soberania nacional de todos os povos do mundo, inclusive europeus, com o destaque, essa marca de Caim, para os países da América Latina, da África, da Ásia e da Oceania.


O racismo de Estado colonial estadunidense, assim, para além da cor da pele, tem um alvo insubstituível: a soberania nacional, condenada à condição de “sub-raça”.


Estatuto colonizado da humanidade e a “memória do cárcere dos povos”

O livro Memórias do cárcere (1953), de Graciliano Ramos, se ampliado o zoom, pode bem representar o estatuto colonizado da humanidade, esse cárcere trans-histórico dos povos. No capítulo 20 da quarta parte dessa indispensável obra ensaística da literatura mundial, ao narrar o envio – realizado pela ditadura Vargas de 1937 a 1945 – de Olga Prestes e Eliza Berger para o III Reich de Hitler, a seguinte passagem tornou-se exemplar para objetivar o racismo de Estado colonial do Ocidente: “O nazismo não exigia restos humanos, deixava que eles se acabassem no cárcere úmido e estreito (RAMOS, 1998, p. 276)”.


O nazismo, nesse caso, seria a expressão objetivada do estatuto colonizado da humanidade, jamais podendo ser analisado como exceção. É a regra, tendo como objetivo impor aos povos o cárcere úmido e estreito da superexploração transversal, primitiva, o que significa, em outras palavras, a saber: os povos não podem ser autossuficientes, soberanos, sujeitos de seus destinos, devendo estar literalmente encarcerados em um modo de produção que lhes sanguessugue sem cessar.


Nesse contexto, tanto os modos de produção escravistas greco-romanos, quanto o feudal e o capitalista, ao se estruturarem sob o signo da superexploração do homem sobre o homem e sobre a natureza, podem ser interpretados como civilizações ao estilo dos campos de concentração; cárceres úmidos e estreitos em que os povos têm sido confinados pelas oligarquias do passado e do presente.


Estas, no entanto, as oligarquias, não são uma abstração homogênea, pois sempre existiram as colonizadoras e as que desempenharam o papel subordinado, hierarquicamente inferior, resultando desse princípio a razão de ser das guerras. Por exemplo, os 100 anos da Guerra de Troia foram guerras entre duas oligarquias, a grega e a troiana. Com a vitória da primeira, a segunda passou a estar a seu serviço, impondo o estatuto colonizado a seu próprio povo, tendo em vista a seguinte estrutura: oligarquia colonizadora, oligarquia colonizada, povo duplamente colonizados.


Essa aliança entre oligarquias colonizadoras e colonizadas é o amálgama mundial da acumulação primitiva do capital. Constitui-se por um sistema militarmente integrado de cadeias de comando, razão de ser da seguinte passagem de Memória do Cárcere, a que selou o destino de Olga Prestes, então grávida de Luis Carlos Prestes: “A subserviência das autoridades reles a um despotismo longínquo enchia-me de tristeza e vergonha. Nasceria longe uma criança, envolta às brumas do norte; ventos gelados lhe magoariam a carne trêmula e roxa. Miséria – e essa miséria é abatimento profundo (RAMOS, 1998, p. 276)”.


O estatuto colonizado da humanidade, como úmido e estreito cárcere dos povos, seria inviável sem a constituição de uma legião de autoridades reles, aptas a cumprir ordens longínquas (quaisquer que sejam), garantindo desse modo o sistema militar integrado sem o qual a transversalidade da acumulação primitiva se desmancharia no ar.


Além de sua intricada e kafkiana cadeia de comando, com seus reles de reles, sendo um sistema de cárcere, o estatuto colonizado da humanidade possui a sua própria estrutura carcerária, experimentada na carne viva pelo escritor Graciliano Ramos, preso político que foi objeto de todas as formas de cárcere da acumulação primitiva transversal do capital, o cárcere-viagem, título da Primeira Parte de Memórias do Cárcere, o cárcere do Pavilhão dos Primários, nome da Segunda Parte da obra; o cárcere Colônia Correcional, Terceira Parte; e finalmente o da Casa de Correção, Quarta Parte.


Como escritor representativo do autêntico realismo, o autor de Vidas Secas não inventou nada, posto que cada cárcere designado foi o efetivamente vivido. O primeiro, “Viagem”, é o que marcou o translado dos presos políticos nordestinos para Rio de Janeiro, no fétido e insalubre porão de um navio. Nada em Memorias do cárcere se limita a uma experiência puramente particular, porque toda a obra, a começar por sua estrutura, pressupõe às diversas condições de cárcere dos povos marcados como sub-raças.


O cárcere-viagem representa, também, os navios movidos a remo, as galeras, do Império Romano, impulsionadas por escravizados permanentemente chicoteados porque o descanso estava proibido e era preciso remar até a morte. Corresponde igualmente os navios negreiros do período do tráfico negreiro mercantilista-colonial, dominando pelos britânicos, assim como os diversos navios estadunidenses que funcionam como verdadeiros campos de concentração em alto-mar, na atualidade.


Por sua vez, o “Pavilhão dos Primários” se constitui como o espaço de separação do joio do trigo, isto é, do colonizado perigoso para o colonizado domesticado, cabendo ao primeiro a punição maior, a da “colônia correcional”, campo de concentração em que as hierarquias entre os presos comuns e presos políticos, os letrados e não letrados, são eliminadas, prevalecendo os maltratos, a ausência de higiene, a alimentação podre, o inferno.


A “Casa de Correção”, na obra e no estatuto colonizado da humanidade, corresponde ao momento de trégua, também chamado de “novo normal”, em que se pode viver melhor sem deixar de estar preso, vigiado e vulnerável ao eterno retorno à viagem à “Colônia Correcional”, que, em linhas gerais, objetiva o estatuto colonizado da humanidade, esse cárcere úmido e estreito em que se acaba com a vida na Terra, essa sub-raça.


De qualquer forma, não importa onde se esteja, se em “Viagem” rumo ao inferno do estatuto colonizado da humanidade, se no “Pavilhão dos Primários”, se na “Colônia Correcional” ou se na “Casa de Correção”, porque, a depender de quem seja e dos melindres do oligarca-mor do momento, a condenação à morte é a sentença transversal, como ocorreu com Olga Prestes e Elisa Berger: “Olga Prestes e Elisa Berger nunca mais foram vistas. Soubemos depois que tinham sido assassinadas num campo de concentração dos nazistas (RAMOS, 1998, p. 278).”


Post-Scriptum

A invasão do fascismo bolsonarista ao Palácio do Planalto, ao STF e ao Congresso, saqueando, roubando, destruindo, lembra os filmes de zumbis da indústria cultural estadunidense.


O inconsciente político dessas narrativas tétricas não é outro senão este: povo “livre”, que ocupa as ruas, deve ser povo morto-vivo – espalha morte, ignomínia e destruição em tudo que toca, deseja, faz.


Curiosamente, a propósito, nos filmes de zumbi, a multidão de mortos-vivos se encontra fundamentalmente nos espaços de fora; está solta no mundo. Os vivos, por outro lado, encarceram-se com o objetivo de se proteger.


A liberdade, assim, evidencia-se como liberdade de estar morto e de matar; a prisão, por sua vez, torna-se o espaço disponível para os vivos – estar vivo é encarcerar-se.


Se o que define o racismo de Estado colonial estadunidense é a condenação da soberania nacional plena à condição de sub-raça, o bolsonarismo constitui, com seu nacionalismo fake, a sua versão zumbítica.


No entanto, o verdadeiro cárcere do estatuto colonizado da humanidade é a sua deriva histórica: a humanidade como costela de Adão do Ocidente.


O Brasil, a esse respeito, nunca foi um país livre, soberano. Fomos a costela de Adão de Portugal, da Inglaterra e somos dos EUA. Só conhecemos de fato uma única memória; a do cárcere.


É por isso que a solução para o bolsonarismo jamais pode ser a cultura woke globalista estadunidense, porque, nesse caso, trocaremos uma costela de Adão por outra, com a ilusão de que a “Casa de Correção” seja melhor que a “Colônia Correcional”, ignorando que o que está em jogo é um sistema carcerário em que, na “Viagem” carcerária sem fim, a sub-raça colonizada não passe de um joguete, de cárcere a cárcere, encarcerada.


Para parodiar o poema “Quadrilha” de Carlos Drummond de Andrade, afinal foi o woke globalista Obama que derrubou Dilma, prendeu Lula, preparou o caminho para Bolsonaro, que nos joga no colo de Biden.


Essa não é, no entanto, uma história de amor, como no conhecido poema de Drummond, mas de cárcere.


Referências:

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 8º ed. Rio Janeiro: Record, 1991.

_____. “Quadrilha”. In.: Alguma poesia. 5º ed. Rio de Janeiro: Record: 2003, p. 79.

ANDRADE, Oswald de. “Manifesto antropófago”. DoPau-BrasilÀantropofagiaeàsutopias. 2. Ed. ObrasCompletas. V. 6. São Paulo: Civilização Brasileira, 1978, p. 19,

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

LENIN, Vladimir Ilytch. Imperialismo, etapa superior do capitalismo. São Paulo: Glo­bal, 1979.

LUXEMBURO, Rosa. La acumulación del capital. Ciudad del Mexico: Editorial Grijalbo, 1967.

MARX, Karl. O capital. Livro I. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017, p.91.

RAMOS, Graciliano. Memórias doCárcere.V.II. 34. Ed. Rio de Janeiro: Record, 1998


Fonte: https://outraspalavras.net/eurocentrismoemxeque/a-faceta-anti-imperialista-de-graciliano-ramos/


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sábado, 6 de janeiro de 2024

Velho, eu?

Imagem: Google

A gente nasce, cresce, fica velho e morre. Bom quando esse ciclo se completa. Alguns e algumas se vão antes, prematuramente, por vários motivos; doenças; balas perdidas; uso de drogas lícitas e ilícitas; guerras; acidentes; desnutrição e fome; suicídio. 

     Bem, como prefiro que a morte me leve naturalmente, vou vivendo o melhor que posso, com a velhice chegando, trazendo rugas e limitações da idade. 

     Há quem tenha dificuldade de aceitar que está ficando velho. Tentam encontrar a fonte da eterna juventude. Busca fadada ao fracasso. Não há cremes,  harmonizações faciais e cirurgias, que dê jeito. A velhice chega, com  flacidez, diminuição da libido, pernas bambas, dores,  coisa e tal.

     A ficha da velhice só caiu em Osvaldo, aos setenta. Graças ao espelho e ao cansaço. Não desistiu de ir ao clube, nadar, levantar peso, caminhar. No que ele estava certo. É preciso cuidar da saúde, sempre. O problema era o desespero, o medo de que seus dias de vida minguavam.

     Osvaldo morre de medo só de pensar na morte. O que não evita de morrer um pouco a cada dia. 


J Estanislau Filho



Sapato Velho

Imagem: Google


Você lembra, lembra
Daquele tempo, eu tinha
Estrelas nos olhos, e um jeito de herói
Era mais forte e veloz
Que qualquer mocinho de cowboy
Você lembra, lembra
Eu costumava andar bem
Mais de mil léguas pra poder buscar
Flores de maio azuis
E os seus cabelos enfeitar
Água da fonte cansei de beber
Pra não envelhecer
Como quisesse roubar da manhã
Um lindo pôr de sol
Hoje não colho mais
As flores de maio
Nem sou mais veloz
Como os heróis
É, talvez eu seja simplesmente
Como um sapato velho
Mas ainda sirvo se você quiser
Basta você me calçar
Que eu aqueço o frio dos seus pés
Água da fonte cansei de beber
Pra não envelhecer
Como quisesse roubar da manhã
Um lindo pôr de sol
Hoje não colho mais
As flores de maio
Nem sou mais veloz
Como os heróis
É, talvez eu seja simplesmente
Como um sapato velho
Mas ainda sirvo se você quiser
Basta você me calçar
Que eu aqueço o frio sos seus pés
É, talvez eu seja simplesmente
Como um sapato velho
Mas ainda sirvo se você quiser
Basta você me calçar
Que eu aqueço o frio dos seus pés

Autores: Paulinho Tapajós, Claudio Nucci e Mú Carvalho